prêmio Portugal Telecom

Sentimental, Eucanaã Ferraz

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“Sentimental”, do poeta carioca Eucanaã Ferraz, diz a que veio já na primeira página, com o poema “O Coração”. São apenas dois versos, porém, com a força que muitos livros jamais terão. Diz assim:

Quase só  músculo a carne dura.

É preciso morder com força.

Ao longo da leitura, o leitor não consegue esquecer “O Coração”, e não é por causa de sua brevidade. A ideia nele representada pelos termos “carne dura” e “morder com força” serão constantes em todos os poemas, os quais tratam, claro, do que chamo aqui de as coisas do coração, este músculo muitas vezes de carne dura: amor, solidão, (des)ilusão. São, obviamente, temas universais tratados com a inteligência e sofisticação que poucos – e geniais – poetas apresentaram ao mundo.

Muitos dos poemas de “Sentimental” levaram anos, até mesmo décadas, para serem finalizados. Isso porque Eucanaã Ferraz procurava costurar cada um com a palavra mais correta possível (foi o que ele mesmo contou no Paiol Literário de julho do ano passado, aqui em Curitiba *). Todo cuidado é justificável quando analisamos a musicalidade e a força de cada palavra e de cada verso na poesia de Eucanaã Ferraz. Um exemplo está em “Sob a luz feroz do teu rosto”, a propósito, um dos meus favoritos.

Sob a luz feroz do teu rosto

Amar um leão usa-se pouco,
porque não pode afagá-lo
o nosso desejo de afagá-lo,

como tantas vezes cão ou gato
aceitam-nos a mão a deslizar
sobre seu pêlo;

amar um leão não se devia,
agora que já não somos divinos,
quando a flauta que tudo

encantaria, gentes animais
pedras, nós a quebramos contra
a ventania; amar

um leão é só distância: tê-lo ao lado,
não poder beijá-lo, o deserto
que habita em torno dele;

era mais certo amar um barco,
era mais fácil amar um cavalo;
amar um leão é não poder amá-lo;

e nada que façamos adoça
o que nele nos ameaça se
amar um leão nos acontece:

à visão de nosso coração
ofertado, tudo nele se eriça,
seu desprezo cresce;

amar um leão, se nos matasse;
se nos matasse o leão que amamos
seria a dor maior, mais que esperada:

presas patas fúria cravadas em nossa carne;
mas o leão, que amamos,
não nos mata.

E é com a união entre técnica e conteúdo que Eucanaã Ferraz consegue criar imagens fortes, sejam elas das situações mais banais ou de eventos tristes e em poucos versos ou algumas páginas. É o que acontece em “Victor Talking Machine”:

A flor aberta do gramofone por onde amídala

a música passava lisa; havia também o cão

estático diante do aparelho; além de ouvir

a música,

ele podia farejá-la? Talvez até pudesse vê-la

(…)

E é assim, com beleza, ironia e melancolia que o poeta constrói o seu “Sentimental” e desfaz o equívoco de quem acreditava que encontraria uma série de poemas cheios de sentimentalismo barato. Nada na poesia de Eucanaã Ferraz conforta. Ao contrário, ela perturba, incomoda e fere tanto quanto o leão amado do poema acima. Acredito que, de fato, provocar o leitor tenha sido a intenção do poeta (e, mais uma vez, baseio-me no bate-papo do Paiol Literário).

Há muita coisa sobre as quais eu gostaria de escrever aqui sobre “Sentimental”, o mais recente vencedor do Prêmio Portugal Telecom. Porém, prefiro deixar que cada um tire suas próprias conclusões com o poema mais lindo de “Sentimental”.

El laberinto de la soledad

Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.

Depois disso, ao ver que a folha era verde disse

a folha é verde, via que a água era transparente

e dizia a água é transparente via a chuva que caía

e dizia a chuva está caindo via que a noite surgia

e dizia lá vem a noite, por isso uns amigos diziam

que Yuri era só obviedades enquanto outros

atestavam que tolos se limitavam a tautologias

e inimigos juravam que Yuri era um idiota

que se comovia mais que o esperado; chorava

nos museus, teatro, diante da televisão, alguém

varrendo a manhã, cafés vazios no fim da noite,

secos de carvão; a neve caindo, dizia é branca

a neve e chorava; se estava triste, se alegre,

essa mágoa; mas ria se via um besouro dizia

um besouro, e ria; vizinhos e cunhados decretaram:

o homem estava doido; mas sua mulher assegurava

que ele apenas voltara sentimental. O astronauta

lacrimoso sentia o peito tangido de amor total

ao ver as filhas brincando de passar anel

e de melancolia ao deparar com antigas fotos

de Klushino, não aquela dos livros, estufada

de pensões e medalhas, mas sua aldeia menina,

dos carpinteiros, da lua e lobisomens,

do seu tio Pavel, de sua mãe, do trem,

de seus primos, coisas assim, luvas velhas,

furadas, que servem apenas para fazer chorar.

Era constrangedor o modo como os olhos

de Yuri pareciam transpassar as paredes

nas reuniões de trabalho, nas solenidades,

nas dicsussões de metas para o próximo ano

e no instante seguinte podiam se encher de água

e os dentes ficavam quase azuis de um sorriso

inexplicável: um velho general, ironicamente

ou não, afirmara em relatório oficial que Yuri

Gagarin vinha sofrendo de uma ternura

devastadora; sabe-se lá o que isso significava,

mas parecia que era exatamente isso, porque

o herói não voltou místico ou religioso, ficou

doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade

de um pequeno-burguês, conforme sentença

do Partido a portas fechadas. Certo dia, contam

caiu aos pés de Octavio Paz; descuidado, tropeçara

de paixão pelas telas cubistas degeneradas de Picasso.

Médicos recomendaram vodca, férias, Marx,

barbitúricos; o pobre-diabo fez de tudo

para ser igual a todo mundo; mas,

quando parecia apenas banal, logo dizia coisas

como a leveza é leve. Desde o início,

quiseram calá-lo; uma pena; Yuri voltou vivo

e não nos contou como é a morte.

***

* Você pode ler a cobertura do Paiol Literário, evento que traz a Curitiba grandes escritores, com o Eucanaã Ferraz aqui.

Desafio do Livrada:

7 – Um livro de poesia

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Sentimental

Eucanaã Ferraz

Companhia das Letras